segunda-feira, 27 de outubro de 2008

Noite estrelada

No decorrer de noites tão nubladas
E dias infindáveis e sombrios
Permanece cinzenta a orbe apagada
Por um fino chuvisco triste e frio

Nem mesmo a primavera anunciada
Pôde por fim trazer ao céu o estio
Deixando as tenebrosas alvoradas
E os ocasos ainda mais vazios

Enfim, cessa o domínio de vil nuvem
Enfim, escorre no ar réstia estelar
Que enche de fulgurante brilho o olhar

Banquete luminoso aos olhos servem
E põem a esfera célica a brilhar
Trilhando o céu estrelas e luar

terça-feira, 21 de outubro de 2008

Mistah Kurtz - he dead.

Sinhô Kurtz - tá morto.


Deita-se a sombra com o fim do dia
O breu se espalha em lúgubre cabina
Entra sem qualquer súplica sombria
E aguarda em trevas onde a morte atina

Uma vibrante vela a visão guia
Na tênue luz ressoa a voz malina
Nada além de um sussurro que sumia
Na evanescente e moribunda sina

Estampado em seu rosto de marfim
A alterar seu perfil sempre imponente
Desesperança de sabor ruim

O fim da sua vida encontra assim
Finda a candeia de chama impotente
“O horror! O horror!”, grita sozinho enfim


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P.S.: Mistah Kurtz merecia muito mais palavras - inesgotáveis numa trova, ou mesmo num soneto. Ressoando o peso da personagem em seu último alento, eis o que me surge: um soneto decassílabo que ora é heróico, ora sáfico. Se a figura esquálida de Kurtz parece ainda vibrar algum grau de heroísmo mesmo em seus últimos momentos, seu fim derradeiro se dá no mesmo terror que, basculando, dá origem à vida.

segunda-feira, 20 de outubro de 2008

Coração da Escuridão

Em semblante de marfim
Pálido horror estampado
Seu coração desgarrado
Encontra as sombras enfim

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P.S.: Uma trova, inspirada em Mistah Kurtz, de Heart of Darkness. Creio ser terrivelmente prolixo: mesmo as redondilhas maiores da trova pareceram insuficientes para os sons que gostaria de articular.

quarta-feira, 15 de outubro de 2008

Sussurros no escuro

Por deleitosas curvas passeiam meus dedos
E encontro em alvo busto teus belos segredos
Se por demais eu subo em ousado passeio
Afago-lhe os cabelos sem qualquer rodeio

Em madeixas morenas me perco e me enredo
Tal qual onda no mar indo contra o rochedo
Sobre teu corpo amável, sedento me arqueio
Para aspirar o cheiro que emana teu seio

A minha língua dança por tua tez tépida
Doce o gosto salgado do suor que é teu
Preenche em profusão todos os meus sentidos

O contato molhado com a boca úmida
O arrebatado encontro do teu corpo e meu
Ao êxtase me levam em leves gemidos

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P.S.: Eis aí uma tentativa inicial de brincar com um soneto em sua forma clássica, tendo versos alexandrinos em sua composição. É a primeira vez que me arrisco com essa métrica, e acho que não saíram alexandrinos muito ortodoxos.

Lexicômano

Lexicômano [leksɪkɑmanu], subst. masc. - Indivíduo que sofre de mania por palavras.

Lolita se escreve com T

"Lo-lee-ta: the tip of the tongue taking a trip of three steps down the palate to tap, at three, on the teeth. Lo. Lee. Ta."
Nabokov não tinha no inglês sua língua materna. E no entanto, nesta frase que aparece sem mais nem menos logo no primeiro capítulo de Lolita, provavelmente a obra pela qual é mais conhecido, o autor nos dá mostras do desejo que seu Humbert sentia por Dolores numa expressão que não é apenas para inglês ver. Para além das brincadeiras eróticas, é jogando com o apelido secreto de seu amor proibido que Humbert se permite gozar: na aliteração heterodoxa da consoante /t/, repete-se, como um eco, o final do nome de Lolita - como bem insiste para Humbert sua fixação admitidamente criminosa pela ninfeta. E não é por acaso que o /t/ vem marcar essa repetição incessante e constante, inegável: o fonema da consoante /t/ varia, nesta frase, entre a oclusiva alveolar e dental, demarcando o mesmo passeio descrito por Humbert quando sua língua articula o nome de Lolita, e dando indícios dos toques e carícias trocados em segredo. Mais ainda: o /t/, enquanto oclusiva, marca uma parada no fluxo de ar pelo trato vocal - parada que não é mais que um estreitamento, angustura da garganta; enfim a angústia de Humbert em não conseguir manejar seus desejos tal qual a imagem que tem de si pareceria permitir. Junto com a oclusão, o fato do fonema /t/ ser surdo, voiceless: contra o ardor do desejo pela púbere, não resta saída alguma a Humbert, não há palavras que possam fazer barreiras ao gozo que toma conta dele - resta apenas se calar e aceitar seu destino perverso. Por fim, nunca é demais recordar que em Dolores não há /t/ algum - quem o introduz, e o faz exclusivamente, não é outro senão o próprio Humbert, selando nesse fonema, ajuntado ao nome da amada, seu destino mortífero.
Como traduzir a oração - oração que Humbert reza para si próprio, tendo em Lolita sua salvação/perdição - para nossa língua mantendo o peso que ela comporta? Tarefa impossível, claro - traduttori, tradittori - mas que ainda assim serve de exercício para fazer falar a língua.
"Lo-li-ta: trela tramada pela ponta da língua traçando todo palato em três tempos, topando, no terceiro, com os dentes. Lo. Li. Ta."

P.S.: Enquanto a passagem em inglês retornava incessante, agitou-se em meu espírito uma outra tradução possível, mais próxima da letra do autor:
"Lo-li-ta: a ponta da língua tomando um trajeto de três tempos por todo palato, topando, no terceito, com os dentes. Lo. Li. Ta."

Os ecos tornam-se amor

Enfim, uma viravolta, Kehre, no caminho: os ecos do cotidiano ressoaram de forma tal que, de ecos passaram a palavras; de palavras, a reconhecimento; de reconhecimento, a afeição; e no fim de tudo, amor. Amor pela língua, única forma de amor possível; amor pelas palavras - não é isso que compõe, sangue do mesmo sangue, o amor entre duas pessoas? Amar um outro é amar suas palavras, o tom de sua voz, o timbre de sua fala - é à língua que dirigimos nosso amor, ainda que encarnada numa pessoa amada.

terça-feira, 14 de outubro de 2008

Haiku - Primavera

Céu revestido de nuvens - 
Escapa do bule de chá
O véu que cobre o luar