quarta-feira, 15 de outubro de 2008

Lolita se escreve com T

"Lo-lee-ta: the tip of the tongue taking a trip of three steps down the palate to tap, at three, on the teeth. Lo. Lee. Ta."
Nabokov não tinha no inglês sua língua materna. E no entanto, nesta frase que aparece sem mais nem menos logo no primeiro capítulo de Lolita, provavelmente a obra pela qual é mais conhecido, o autor nos dá mostras do desejo que seu Humbert sentia por Dolores numa expressão que não é apenas para inglês ver. Para além das brincadeiras eróticas, é jogando com o apelido secreto de seu amor proibido que Humbert se permite gozar: na aliteração heterodoxa da consoante /t/, repete-se, como um eco, o final do nome de Lolita - como bem insiste para Humbert sua fixação admitidamente criminosa pela ninfeta. E não é por acaso que o /t/ vem marcar essa repetição incessante e constante, inegável: o fonema da consoante /t/ varia, nesta frase, entre a oclusiva alveolar e dental, demarcando o mesmo passeio descrito por Humbert quando sua língua articula o nome de Lolita, e dando indícios dos toques e carícias trocados em segredo. Mais ainda: o /t/, enquanto oclusiva, marca uma parada no fluxo de ar pelo trato vocal - parada que não é mais que um estreitamento, angustura da garganta; enfim a angústia de Humbert em não conseguir manejar seus desejos tal qual a imagem que tem de si pareceria permitir. Junto com a oclusão, o fato do fonema /t/ ser surdo, voiceless: contra o ardor do desejo pela púbere, não resta saída alguma a Humbert, não há palavras que possam fazer barreiras ao gozo que toma conta dele - resta apenas se calar e aceitar seu destino perverso. Por fim, nunca é demais recordar que em Dolores não há /t/ algum - quem o introduz, e o faz exclusivamente, não é outro senão o próprio Humbert, selando nesse fonema, ajuntado ao nome da amada, seu destino mortífero.
Como traduzir a oração - oração que Humbert reza para si próprio, tendo em Lolita sua salvação/perdição - para nossa língua mantendo o peso que ela comporta? Tarefa impossível, claro - traduttori, tradittori - mas que ainda assim serve de exercício para fazer falar a língua.
"Lo-li-ta: trela tramada pela ponta da língua traçando todo palato em três tempos, topando, no terceiro, com os dentes. Lo. Li. Ta."

P.S.: Enquanto a passagem em inglês retornava incessante, agitou-se em meu espírito uma outra tradução possível, mais próxima da letra do autor:
"Lo-li-ta: a ponta da língua tomando um trajeto de três tempos por todo palato, topando, no terceito, com os dentes. Lo. Li. Ta."

2 comentários:

Unknown disse...

'Lolita, light of my life, fire of my loins. My sin, my soul. Lo-lee-ta' Há, esse livro é apaixonante. Muito bem!

Erikson disse...

muito, muito boa esta postagem.
sou iniciante neste expediente
de tentar trazer à tona sensações palpáveis por meio de palavras exatas e que buscam transgredir a barreira dos sentidos, através da construção de aliterações, sinestesias, misturas semânticas, sintáticas e lexicais,
mas esta tua interpretação é bastante pertinente:
particularmente, nunca li Lolita,
mas me parece que tu conseguiu transmitir para nós a sensação impactante (e dotada de textura e sabor) que o autor pareceu querer proporcionar ao leitor.
(Colocando o comentário da senhorita Clara em seu devido lugar - com sua licença, espero =-))