quinta-feira, 18 de dezembro de 2008

Alexandrinos II - Fim da Primeira Parte


I – A Punição

“Cortem as asas dele!” – ordenou o carrasco.
“As asas com as quais uma vez varou céus –
Ah! Não mais, nunca mais!” – falou tomado de asco
Que escorria da pele e enchia o ar de fel
“E joguem-no por fim, sem asas, do penhasco!”

“Não deixem pluma alguma em tão pífio réu.
Talhem todas as seis! Seis é sua medida,
Seis o seu julgamento e seis o seu laurel!
Que levará consigo até o fim da vida
E será para sempre o seu algoz cruel.”

Das seis asas privado, o sangue da ferida
Sobre seu corpo nu vertia fogo ardente.
Arrastado ele foi para sua caída
Posto à beira do abismo a contemplar ciente
A sina a si negada e assim sempre temida

“Vê, pela última vez, esta orbe reluzente
Que um dia foi teu lar, tomou teu desamparo –
Ah! Não mais, nunca mais!” – bradou a voz demente
Ao prender os grilhões sem um grande preparo:
“Teu crime a ti atado em teu curso cadente!”

“Não mais terás visão alguma do céu claro
E do brilho estelar – somente escuridão!
Suportarás em falta o anelo que lhe é caro –
Com trevas sobre ti, sem sombra de perdão,
Terás apenas dor em sofrimento raro!”

----

Mais duas estrofes, algumas cinzeladas aqui e acolá, e primeira parte (temporariamente intitulada "A Punição) está terminada, por ora - até novos reparos se mostrarem necessários.
Enquanto o burilamento não se mostra evidente, vou continuando e elaborando as duas partes seguintes, das quais alguns versos já começam a se conformar.

quarta-feira, 10 de dezembro de 2008

Alexandrinos II - Primeira parte

I – A Punição

“Cortem as asas dele!” – ordenou o carrasco.
“As asas com as quais uma vez cruzou céus –
Ah! Não mais, nunca mais!” – falou tomado de asco
Que escorria da pele e enchia o ar de fel
“E joguem-no por fim, sem asas, do penhasco!”

“Não deixem pena alguma em tão pífio réu.
Talhem todas as seis! Seis é sua medida,
Seis é seu julgamento e seis o seu laurel!
Que levará consigo até o fim da vida
E será para sempre o seu algoz cruel.”

Das seis asas privado, o sangue da ferida
Sobre seu corpo nu vertia fogo ardente.
Arrastado ele foi para sua caída
Posto à beira do abismo a contemplar ciente
A sina reservada a si e assim temida

----

Bem, um novo impulso tomou conta de mim, e resolvi retomar os alexandrinos. Pensei em trabalhar com versos heróicos, mas precisava de maior espaço para dar conta do meu palavrório - e muito mais que doze sílabas, só barbarizando o poema ou retomando novamente a métrica clássica, nenhuma opção que gostaria de recorrer. Por fim, para não me manter em nenhuma forma tradicional de arranjo de estrofes e versos, resolvi que escreveria cerca de 100 versos, divididos em vinte stanzas, e estas agrupadas, por fim, em torno de seu tema central. Veremos o que poderá nascer daí.
Como o trabalho se mostra dispendioso, preferi ir publicando-o em partes, para não manter o blog entregue às traças. Aí em cima, três primeiras estrofes que comporão a primeira parte.

Para não perder o costume, e para exercitar a língua, coloco aqui a escansão do primeiro verso:
"COR - tem as A-sas DE(le!") || - _or-de-NOU o ca-RRAS(co)
Lembrando: o verso Alexandrino clássico é composto por dois hemísticos de seis pés cada. Sendo rigoroso, a cesura que separa o primeiro hemístico deve ser tônica, ou seja, terminar com a tônica na sexta sílaba, sem nenhum "excesso" silábico - uma oxítona, de preferência. Aqui, aparentemente, esta regra é ferida, mas deve-se prestar atenção: o restante, posto entre parêntesis, sofre elisão pela sílaba inicial do hemístico seguinte.

terça-feira, 25 de novembro de 2008

Muito Barulho por Nada


Brado em palavras um grito silente no peito fechado
Grito de dor e de raiva e de cólera e ira tomado
Cerro meu punho sem ter entretanto temor em desistir
Berros e murros rasgando na vida uma dor de existir

Pausa – o silêncio impera suspenso, no ocaso calado
Nem um suspiro ressoa na noite de ar tão pesado
Só calmaria opressora, no abismo sem fundo a insistir
Nada mais ouço no escuro, nem eco nem som a persistir

Mudo foi feito o clamor – manifesta-se enfim a quietude
Como somente depois do alarido percebo-me tão só?
Contra o que mesmo me bato e debato, senão solitude?

Num desatino passado desfaz-se completo um nó
Tão instantâneo o momento perdido na imensa amplitude
Somem efêmeros brado e silêncio – retorno eu ao pó

----

Depois de muito obrar sobre o poema, consegui enfim (mas não sem o uso talvez inexcuso de licença poética) completar um soneto composto unicamente por versos hexâmetros datílicos, como os clássicos épicos.

Sem me alongar por demais nos comentários, faço a escansão do primeiro verso para mostrar a estrutura tipicamente utilizada nos versos que fizeram a fama de Ilíada, Odisséia e tantos outros épicos gregos e latinos.

BRA-do_em pa- | LA-vras um | GRI-to || si | LEN-te no | PEI-to fe- | CHA-do

O verso, é claro, é composto por seis pés dáctilos, ou seja, seis metros compostos por uma sílaba tônica seguida por duas átonas (lembrando, é claro, que é feita a tranposição tradicional das sílabas longas e curtas do grego e latim para sílabas tônicas e átonas no português). Entretanto, o último pé nunca é completo, sendo normalmente um espondeu (duas sílabas tônicas). Como isso é difícil de se conseguir em português, utilizei-me de licença poética e variei as últimas duas sílabas no decorrer do poema todo.
O hexâmetro também é marcado por uma cesura, uma pausa no meio do verso. Tipicamente essa cesura recai depois da tônica do terceiro dáctilo (cesura masculina), ou então depois da primeira átona do terceira dáctilo (cesura feminina). Neste verso específico, temos uma cesura feminina (marcada por "||").

quinta-feira, 13 de novembro de 2008

Sáficos I - Antes que o dia chegue


Sobre a cama mal arrumada vejo
Tua forma bela, por ti ocultada
Sob lençol desnudas o meu desejo
Ninfa sonhada!

Pés descalços mostram-se de soslaio
Véu de linho esconde-lhe a tez dourada
Quais encantos guarda o sorriso gaio,
Ninfa sonhada?

Eu venero as horas da noite escura
Cheias do silêncio da alvorada
Quando cantas só para minha ardura
Ninfa sonhada.

Meia luz que o rosto de sombras cobre
Faz brilhar o olhar que me torna em nada
Nada além de anelo por corpo nobre
Ninfa sonhada.

Minha mão te encontra em roçar garrido
Sinto assim tremer, de prazer tomada
Só suspiro leve no teu ouvido,
“Ninfa sonhada...”


----

Mais três stanzas compostas, e eis pronto um novo poema. Melhorei um verso que no post anterior só funcionava por licença poética, e pronto. Sem escansões desta vez.

quarta-feira, 12 de novembro de 2008

Ensaiando novas formas


Sobre a cama mal arrumada vejo
Tua forma bela, por ti ocultada
Sob lençol desnudas o meu desejo
Ninfa sonhada!

Pés descalços mostram-se de soslaio
Véu de linho esconde a tez dourada
Quais encantos guarda o sorriso gaio,
Ninfa sonhada?


----

Nova empreitada: experimentar agora os versos sáficos em sua forma tradicional. Nome dado em homenagem à poetisa grega que os tornou famosos, Safo, seu esquema é constante: cada estrofe tem quatro versos, três dos quais são compostos por - troqueu | troqueu | dátilo | troqueu | troqueu - e, por fim, um verso Adônico, composto por apenas dois pés: dátilo | troqueu.
Aí em cima está um exemplo, em duas stanzas de esboço de um novo poema. Tive que me utilizar da boa e velha licença poética para alcançar os metros desejados em dois versos, e optei por utilizar rimas, ainda que não sejam utilizadas nos versos sáficos clássicos. Quanto ao verso adônico, optei por tranformá-lo num refrão, experimentando com a repetição da sonoridade, como o "Raven" de Poe.
Como não poderia deixar passar, faço a escansão do primeiro verso e do refrão para explicar melhor seus metros:

SO - bre_a | CA - ma | MAL a - rru -| MA - da | VE - jo

O troqueu é um pé com uma sílaba tônica e a seguinte átona. O dáctilo, como já falado em outro post, contém a uma sílaba tônica seguida por duas átonas. Passemos ao verso adônico:

NIN - fa so - | NHA - da

Eis aí novamente o dátilo seguido de um troqueu.

Apenas uma nota final quanto ao tema: os versos da poetisa Safo são famosos por remeterem ao erotismo de uma forma geral. Como não poderia deixar a oportunidade passar, retomo também o conteúdo clássico para tal forma poética.

sábado, 8 de novembro de 2008

Palavras quietas


De tantos versos fiz-me haver assim
E sem saber de que lugar provêm
Que disse a mim poder ouví-los bem
Ainda que ninguém ouvisse enfim

Palavra bela, feia e outra afim
Seus sons soavam sem supôr porém
Estarem sendo ditas por alguém
E mesmo assim falavam alto em mim

Mas ora, nada disso importa então
Se os versos toam para ouvido atroz
A minha fala mostra ser em vão

Contudo faço austera minha voz
Retomo o verbo certo e meu quinhão
E brado meu poema em tom feroz

----

Terminei o soneto, depois de alguns dias trabalhando nele. Os dois tercetos saíram devagar, exigindo atenção especial. Alterei apenas um verso da segunda estrofe para melhorar a sonoridade do soneto. No fim, consegui compô-lo integralmente em pentâmetros iâmbicos.

quinta-feira, 6 de novembro de 2008

Esboço de Soneto II - Segundo quarteto


Palavra bela, feia e outra afim
Seus sons soavam sem supôr porém
Que estavam sendo ditas por alguém
Mas mesmo assim falavam alto em mim

----

Eis que o segundo quarteto se completa, deste soneto escrito a prazo. Faltam ainda os dois tercetos, que pretendo terminar antes do final de semana chegar. O esquema rítmico continua o mesmo, apesar de ter sofrido em momentos para alterar os iambos por troqueus, para experimentar. Mas não. Desta vez, apenas iambos.

quarta-feira, 5 de novembro de 2008

Esboço de Soneto I - Quarteto inicial


De tantos versos fiz-me haver assim
E sem saber de que lugar provêm
Que disse a mim poder ouví-los bem
Ainda que ninguém ouvisse enfim


----

Eis aí um quarteto, que era para ser, de início, uma trova, mas que decidi por fim tornar num soneto. O esquema rítmico que decidi utilizar é o pentâmetro iâmbico, típico dos sonetos ingleses, que contém cinco iambos. Um iambo é uma unidade rítmica (um pé) composto por uma sílaba átona e uma tônica, nesta sequência. Fiquei particularmente orgulhoso por ter conseguido compor o último verso sem precisar alterar em nada sua estrutura ou suas palavras: ele me surgiu no espírito tal qual está escrito, já dentro da métrica pretendida.
Para finalizar, apenas a escansão do primeiro verso para mostrar sua estrutura:

De TAN / tos VER / sos FIZ / -(me)haVER / aSSIM

Cinco pés iâmbicos, que por sua vez contam 10 sílabas poéticas. Nota especial para a elisão do "e"de "-me" pelo a de "ha", dando uma única sílaba poética.

Dístico Elegíaco II


É a linguagem que fala naquilo que digo, somente
Nem sentimento ou intenção tenho poder de dizer

----

Eis aí mais um dístico. Seguindo, é claro, o mesmo esquema rítmico: um hexâmetro e um pentâmetro dactílico.
O modo de criação poética nesta métrica está se tornando um pouco mais evidente para mim; quero ver se consigo escrever uma trova num esquema semelhante, como o pentâmetro iâmbico.
Creio ter conseguido obter um dístico mais sonoro, desta vez.

terça-feira, 4 de novembro de 2008

Propedêutica prosódica prolixa - OU Dístico Elegíaco I


"É com a língua que falo, mas não a utilizo e sim, sofro-a
Tal qual doente febril que arde sentindo-se só"

Sem P.S. - tal dístico merece explicação. Eis que brincando com os sons das palavras, deparo-me com a métrica clássica, grega e latina, e a maneira como é utilizada na poesia inglesa em profusão. Fiquei ainda mais surpreso em perceber que a métrica de nossa querida língua, ainda que esta tenha se originado do latim vulgar, perdeu do latim a prosódia, e desenvolveu, numa história que ainda preciso desvendar, um esquema rítmico próprio, diferenciado.
Intrigado com a complexidade dos diversos pés e metros da prosódia clássica, pensei em elaborar a partir dela algum poema. Minha dificuldade foi tamanha, que resolvi reduzir meu esforço a um pequeno dístico elegíaco - um par de versos, sendo o primeiro um hexâmetro dactílico, e o segundo um hexâmetro dactílico com dupla catalexia - ou seja, com dois pés incompletos - e dotado de uma cesura.

Como o amontoado de palavras pode não ter feito muito sentido, façamos a escansão do dístico para revelar sua estrutura.

Somente uma nota anterior: é impossível nos desvencilharmos do registro do sentido, mas, para a análise do poema, concentremo-nos em seu aspecto sonoro, que é o que nos interessa aqui, enfim.
Colocarei em maiúsculo e negrito as sílabas tônica para melhor marcar os pés dos versos.

É com a | LÍNgua que | FAlo, mas | NÃO a uti | LIzo e sim, | SOfro-a
TAL qual do | ENte fe | BRIL || QUE ARde sen | TINdo-se|

Cada barra ("|") separa um pé do seguinte. Os pés são dactílicos porque se organizam no seguinte esquema: "Sílaba Tônica - Sílaba átona - sílaba átona", que é, justamente, o pé dátilo. Como são seis pés, ambos os versos são hexâmetros. Entretanto, o primeiro verso tem seu último pé cortado, ou seja, cataléxico, na medida em que seu esquema é apenas "Sílaba tônica - Sílaba átona" (lembremo-nos que o "o" é elidido pelo "a" que o segue neste pé).

O segundo verso começa com dois dátilos, mas é interrompido por uma sílaba tônica, que forma um pé próprio. Seguido deste pé manco, temos a cesura ("||"), que marca uma pausa no verso, um rompimento na cadeia rítmica. Por fim, mais dois pés dactílicos, finalizados por outra sílaba tônica, denotando outro pé cataléxico e fechando o poema.

Por possuir apenas quatro pés dactílicos e duas sílabas tônica, o segundo verso costuma ser classificado não como hexâmetro, mas sim como pentâmetro (as duas sílabas longas marcariam um quinto pé).

segunda-feira, 27 de outubro de 2008

Noite estrelada

No decorrer de noites tão nubladas
E dias infindáveis e sombrios
Permanece cinzenta a orbe apagada
Por um fino chuvisco triste e frio

Nem mesmo a primavera anunciada
Pôde por fim trazer ao céu o estio
Deixando as tenebrosas alvoradas
E os ocasos ainda mais vazios

Enfim, cessa o domínio de vil nuvem
Enfim, escorre no ar réstia estelar
Que enche de fulgurante brilho o olhar

Banquete luminoso aos olhos servem
E põem a esfera célica a brilhar
Trilhando o céu estrelas e luar

terça-feira, 21 de outubro de 2008

Mistah Kurtz - he dead.

Sinhô Kurtz - tá morto.


Deita-se a sombra com o fim do dia
O breu se espalha em lúgubre cabina
Entra sem qualquer súplica sombria
E aguarda em trevas onde a morte atina

Uma vibrante vela a visão guia
Na tênue luz ressoa a voz malina
Nada além de um sussurro que sumia
Na evanescente e moribunda sina

Estampado em seu rosto de marfim
A alterar seu perfil sempre imponente
Desesperança de sabor ruim

O fim da sua vida encontra assim
Finda a candeia de chama impotente
“O horror! O horror!”, grita sozinho enfim


-------

P.S.: Mistah Kurtz merecia muito mais palavras - inesgotáveis numa trova, ou mesmo num soneto. Ressoando o peso da personagem em seu último alento, eis o que me surge: um soneto decassílabo que ora é heróico, ora sáfico. Se a figura esquálida de Kurtz parece ainda vibrar algum grau de heroísmo mesmo em seus últimos momentos, seu fim derradeiro se dá no mesmo terror que, basculando, dá origem à vida.

segunda-feira, 20 de outubro de 2008

Coração da Escuridão

Em semblante de marfim
Pálido horror estampado
Seu coração desgarrado
Encontra as sombras enfim

-----

P.S.: Uma trova, inspirada em Mistah Kurtz, de Heart of Darkness. Creio ser terrivelmente prolixo: mesmo as redondilhas maiores da trova pareceram insuficientes para os sons que gostaria de articular.

quarta-feira, 15 de outubro de 2008

Sussurros no escuro

Por deleitosas curvas passeiam meus dedos
E encontro em alvo busto teus belos segredos
Se por demais eu subo em ousado passeio
Afago-lhe os cabelos sem qualquer rodeio

Em madeixas morenas me perco e me enredo
Tal qual onda no mar indo contra o rochedo
Sobre teu corpo amável, sedento me arqueio
Para aspirar o cheiro que emana teu seio

A minha língua dança por tua tez tépida
Doce o gosto salgado do suor que é teu
Preenche em profusão todos os meus sentidos

O contato molhado com a boca úmida
O arrebatado encontro do teu corpo e meu
Ao êxtase me levam em leves gemidos

---

P.S.: Eis aí uma tentativa inicial de brincar com um soneto em sua forma clássica, tendo versos alexandrinos em sua composição. É a primeira vez que me arrisco com essa métrica, e acho que não saíram alexandrinos muito ortodoxos.

Lexicômano

Lexicômano [leksɪkɑmanu], subst. masc. - Indivíduo que sofre de mania por palavras.

Lolita se escreve com T

"Lo-lee-ta: the tip of the tongue taking a trip of three steps down the palate to tap, at three, on the teeth. Lo. Lee. Ta."
Nabokov não tinha no inglês sua língua materna. E no entanto, nesta frase que aparece sem mais nem menos logo no primeiro capítulo de Lolita, provavelmente a obra pela qual é mais conhecido, o autor nos dá mostras do desejo que seu Humbert sentia por Dolores numa expressão que não é apenas para inglês ver. Para além das brincadeiras eróticas, é jogando com o apelido secreto de seu amor proibido que Humbert se permite gozar: na aliteração heterodoxa da consoante /t/, repete-se, como um eco, o final do nome de Lolita - como bem insiste para Humbert sua fixação admitidamente criminosa pela ninfeta. E não é por acaso que o /t/ vem marcar essa repetição incessante e constante, inegável: o fonema da consoante /t/ varia, nesta frase, entre a oclusiva alveolar e dental, demarcando o mesmo passeio descrito por Humbert quando sua língua articula o nome de Lolita, e dando indícios dos toques e carícias trocados em segredo. Mais ainda: o /t/, enquanto oclusiva, marca uma parada no fluxo de ar pelo trato vocal - parada que não é mais que um estreitamento, angustura da garganta; enfim a angústia de Humbert em não conseguir manejar seus desejos tal qual a imagem que tem de si pareceria permitir. Junto com a oclusão, o fato do fonema /t/ ser surdo, voiceless: contra o ardor do desejo pela púbere, não resta saída alguma a Humbert, não há palavras que possam fazer barreiras ao gozo que toma conta dele - resta apenas se calar e aceitar seu destino perverso. Por fim, nunca é demais recordar que em Dolores não há /t/ algum - quem o introduz, e o faz exclusivamente, não é outro senão o próprio Humbert, selando nesse fonema, ajuntado ao nome da amada, seu destino mortífero.
Como traduzir a oração - oração que Humbert reza para si próprio, tendo em Lolita sua salvação/perdição - para nossa língua mantendo o peso que ela comporta? Tarefa impossível, claro - traduttori, tradittori - mas que ainda assim serve de exercício para fazer falar a língua.
"Lo-li-ta: trela tramada pela ponta da língua traçando todo palato em três tempos, topando, no terceiro, com os dentes. Lo. Li. Ta."

P.S.: Enquanto a passagem em inglês retornava incessante, agitou-se em meu espírito uma outra tradução possível, mais próxima da letra do autor:
"Lo-li-ta: a ponta da língua tomando um trajeto de três tempos por todo palato, topando, no terceito, com os dentes. Lo. Li. Ta."

Os ecos tornam-se amor

Enfim, uma viravolta, Kehre, no caminho: os ecos do cotidiano ressoaram de forma tal que, de ecos passaram a palavras; de palavras, a reconhecimento; de reconhecimento, a afeição; e no fim de tudo, amor. Amor pela língua, única forma de amor possível; amor pelas palavras - não é isso que compõe, sangue do mesmo sangue, o amor entre duas pessoas? Amar um outro é amar suas palavras, o tom de sua voz, o timbre de sua fala - é à língua que dirigimos nosso amor, ainda que encarnada numa pessoa amada.

terça-feira, 14 de outubro de 2008

Haiku - Primavera

Céu revestido de nuvens - 
Escapa do bule de chá
O véu que cobre o luar

quinta-feira, 12 de junho de 2008

Haiku sem número - Outono

A noite cai - 
Uma gota de suor
Também cai no chão